O tempo passava rápido. E, para algumas pessoas, aqueles eram os momentos finais
que antecediam a comemoração das bodas de ouro de Taíde e Inês. O casal sempre
foi tido em alta conta, pois estruturaram e fomentaram o desenvolvimento daquela
extensão familiar fora da Europa. Por
isso o evento era tão aguardado por aqueles descendentes de gauleses,
atualmente franceses, que se esmeravam ao máximo para a sua realização. Para o
feito, a família, imensa por sinal, se organizou de forma financeira e
operacional, cuidando de cada detalhe. A maioria das iguarias vieram
encomendadas de várias regiões da Europa. Eram carnes, molhos, ervas, temperos,
especiarias, bebidas, cervejas, queijos, geleias. Foram tantos os produtos que
as importadoras de alguns membros da família tiveram que importar com meses de
antecedência.
Como o evento tinha previsão para, ao menos, 300 pessoas, a mansão dos Doravan seria utilizada. Na parte dos fundos da residência, foram dispostos jogos de mesas e cadeiras, ao lado, um lugar onde tocariam música, próximo, foi montada uma grande churrasqueira para assar as carnes. A adega era grande, mas não pôde receber as bebidas extras, então trouxeram um caminhão baú com sistema de refrigeração. Na cozinha, ao menos 10 mulheres preparavam toda a comida. Receitas das mais simples às mais sofisticadas. Sendo assim, contrataram garçons que ficariam responsáveis por servir as refeições e bebidas.
Previsto
para começar às 18h, boa parte dos convidados chegou faltando 15 minutos para o
início. Na mesa principal, sentaram Taíde, Inês e seus filhos, filhas e netos.
Era tanta gente que foi difícil acomodar, mas, com jeito, couberam. Os demais
familiares se distribuíram pelas mesas laterais e os poucos convidados que não
eram da família ficaram próximos à entrada.
O dee jay começou cedo, e músicas diversas
tocavam ambientando a comilança. Eram servidas ripas de costela de javali;
purês de abóbora, batata e mandioca; peixes recheados; molhos de ervas; queijos
diversos; ovos cozidos de ganso; bolinhos de peixe; tomates recheados; tábuas
de frios; sopas e tantas outras iguarias que relembravam a culinária de seus
antepassados.
Minutos
antes, Valéria chegou acompanhada por um rapaz muito bem-vestido, que até
destoava dos presentes no evento. Ela se sentou, mas ele cochichou algo em seu
ouvido e saiu.
Na
sequência, chegaram Astor e Margareth, que foram cumprimentados pela maioria
dos presentes. Então ouviram: “Está mais
bela que da última vez que a vi.”, “Astor
é um sortudo. A primeira namorada, e já se tornou esposa e mãe.”, “Menino ou menina? Menino ou menina?”, “São quantos?”, e havia os mais
apressados: “Já estão se preparando para
dar um irmãozinho?”. Depois dessa última foi que conseguiram se sentar,
numa mesa próxima à de Taíde e Inês, já que eles tinham Astor como um filho.
Os
olhos de Margareth brilharam quando viram as ripas de costela.
— Eu
quero uma — pediu de imediato.
—
Não é melhor começar de leve? — Astor se preocupou. — Você sabe que a comida
aqui é um pouco pesada.
— Tá
bom, papai. — Ela o beijou, sorrindo. — O que preparou pra mim?
—
Vamos começar com bolinhos de peixe? Também tem tomates recheados.
— É,
pra um começo, não está mal.
Ele
foi lá dentro servir os pratos.
Quem
chegou naquele exato instante foi Marcus e Bruna. Ele não perderia aquela
comemoração, e era mais um bom teste para Bruna, por isso resolveu trazê-la.
Rápida, ela olhou para as pessoas da festa e identificou a jovem.
“Valéria
está aqui. Hoje é meu dia”.
Ela
sabia quais eram os convidados da festa, mas ficou um pouco distante, aguardando
o momento.
Lá
fora chegavam, Rainen, Renata e Tony. O dono da oficina veio chateado, pois os
familiares se negaram a importar queijo
da Córsega, alegando a alta toxidade da iguaria. Mas tentava se esquecer
desse assunto.
Antes
de entrar pelo portão, o Rainen foi abordado por alguém, e pediu:
—
Por favor, Tony, pode acompanhar Renata até a mesa?
—
Mas é claro!
Ficou
ali fora conversando e observando a noiva entrar. Do lado de dentro, uma das
únicas mesas ainda com vagas era a de Valéria.
—
Posso me sentar? — solicitou a garota.
Valéria
não se espantou, mas se confundiu.
—
Bruna?
—
Não! Sou a Renata.
Ao
ver a aliança no dedo da recém-chegada, um atrito nasceu no coração de Valéria.
Sorrateiramente, Bruna se aproximou da mesa.
—
Ora, ora, se não é minha irmã! — E cumprimentou a outra: — Olá, Valéria! Quanto
tempo.
—
Olá! — respondeu um pouco acanhada a amiga.
Já
Renata ficou surpresa e atenta à irmã.
—
Olá, Bruna! E o Marcus?
—
Conversando com os familiares. — Ela sorriu e olhou para Valéria. — E o seu
noivo?
—
Sejamos práticas, Bruna. O que você quer?
—
Eu?!
Então
Valéria se intrometeu:
— Eu
não sei o que ela quer, mas sei o que eu quero. — Tomando coragem, fitou Renata
e disparou: — Eu sou a amante do Rainen.
—
Como é que é?
—
Isso mesmo que você ouviu, Renata. Nesses últimos meses, temos nos encontrado e
mantido um caso secreto.
Renata
ficou perplexa e muda. Foi o instante em que Rainen e Lendoval chegaram. Ali
perto, Bruna acompanhava a tudo e encarou o futuro cunhado:
“Agora
quero ver você se safar dessa”,
Valéria
se levantou.
—
Sei que não é o que gostaria de ouvir, mas é a pura verdade. Pode confirmar
isso através das fotos que te mandei.
Diante
do olhar das duas irmãs, Valéria se aproximou do rapaz e o beijou ardentemente.
Todos na mesa ficaram impressionados com a pegada do beijo. Só não foi pior
porque ela beijou Lendoval, e não Rainen.
—
Não estou entendendo… — Renata se refazia do susto.
—
Sei que deve ser complicado para você, mas é um fato.
—
Valé… — Bruna diria algo, mas foi interrompida.
—
Esperem! Talvez eu possa explicar melhor. — O outro rapaz se aproximou dela e
estendeu a mão em cumprimento. — Prazer! Sou Rainen, o noivo da Renata.
Ninguém
entendeu o que acontecia, todos olharam para o rapaz que fora beijado.
—
Lendoval?! — chamou Rainen.
—
Confesso. Me passei pelo Rainen! Sei que foi um erro, mas, naquele momento,
quando eu te vi tão linda, tão sensual, perguntando se a caminhonete era minha,
não conseguiria responder outra coisa. Até porque eu sabia do compromisso do
meu amigo, e conheço também os seus valores. Ele não entraria numa relação
extraconjugal.
A
explicação trouxe luz aos acontecimentos.
—
Você me enganou?
— Me
perdoe, Valéria. Contudo, você aceitou o que eu te propus sem qualquer
questionamento. Em parte, por ter um plano arquitetado para destruir o
relacionamento de Rainen e Renata, em outra parte, por não ser tão
questionadora com as coisas. Mas, nesse momento, não somos tão diferentes um do
outro.
Valéria
olhou para Bruna, que desviou o olhar.
—
Lendoval… — Ela tentou se aproximar, e ele se afastou. — … me deixa te
explicar.
—
Fique à vontade. Tem muita gente aqui querendo saber como tudo isso começou.
Sentindo
a hora ruim, Bruna ia saindo, mas seus braços foram seguros e ouviu a voz por
trás lhe dizendo:
—
Vamos aguardar juntos por esse desfecho. — Marcus chegou sem ser percebido.
E
Valéria começou:
—
Bruna me procurou pedindo ajuda, dizendo que a irmã fora ludibriada por um
aproveitador e usurpador. Ela me detalhou as más intenções do rapaz e até disse
que temia pela vida da irmã.
— E
você não temeu por sua vida? — questionou Renata.
—
Não tanto. — Da pequena bolsa, Valéria sacou uma minúscula arma. — Ando
prevenida. Além do mais, depois dos primeiros encontros, percebi que Bruna
exagerou bastante na sua descrição sobre Rainen. Então pensei que, se a
ajudasse, talvez conseguisse algo.
—
Algo? — perguntou Lendoval.
—
Ficar com você.
Ele
se sentiu estranho ao ouvir aquilo de uma mulher tão bela como Valéria, mas
manteve o foco no assunto.
—
Renata e Rainen, eu peço sinceras desculpas por tudo o que aconteceu. Se eu
imaginasse que…
—
Não há do que desculpar, Lendoval. Acredite que todo esse problema serviu para
me mostrar quem é a pessoa que está ao meu lado.
Rainen
deu um tapinha em seu ombro.
— Eu
também não sei o que dizer. — Valéria se aproximou do casal. — Eu só…
—
Não diga nada para mim, Valéria. Me parece que outra pessoa é que conversará
com você.
E
olhou para Lendoval, que caminhava para outra mesa.
—
Acha mesmo que ele me… que ele me ouviria? — Valéria temia.
—
Por que não tenta? Apenas seja cuidadosa no ouvir e no falar.
A
garota sorriu, se ajeitou e caminhou na direção do rapaz, que se sentou numa
cadeira ali perto.
—
Posso me sentar? — pediu Valéria.
— Só
tem essa cadeira — ele tentou ser duro.
A
garota se aproximou e se sentou em suas pernas.
—
Tenho certeza de que você pode dividi-la comigo.
Ele
olhou para ela e riu.
—
Você é meio maluquinha.
—
Meio não! Por você eu sou totalmente.
E o
agarrou para um beijo ardente, mas esse não teve tanto problema, pois estavam
mais ao canto, fora da visão da maioria das pessoas.
Então
o foco se tornou outro. Marcus saiu de trás de Bruna e sentou-se numa cadeira.
—
Confesso que desconfiava, mas não acreditava. — Renata sentia uma angústia
mesclada à raiva. — Não entende que é algo mais forte que eu, que o Rainen, que
qualquer um? E isso não pode ser controlado.
Bruna
ouviu tudo em silêncio, até que Renata, se sentindo cansada com tudo aquilo,
foi ao toalete. Assim que ficou só, Rainen encarou a futura cunhada e avançou
em sua direção. Ela tremia e chorava, tentando dizer alguma coisa que estava
presa em sua garganta. O rapaz parou a uma distância que a permitiu sentir o
seu cheiro e o seu hálito. Quase sussurrando, lhe disse:
— Eu
amo sua irmã. Ela a mim. E não há o que você possa fazer.
As
palavras a partiram por dentro quando Rainen foi embora. Ao lado de Bruna,
apenas Marcus.
—
Sabe o que é pior do que colher o que plantou? — Ela meneou negativamente a
cabeça. — É engolir o que se colheu. Agora vamos. Conversaremos sobre o que
aconteceu aqui um outro dia.
E
foram para uma das mesas mais à frente.
Em
instantes, Rainen encontrou-se com Renata, que se recompunha.
— Eu
entenderei se quiser ir embora.
—
Não precisa, amor. Já passou. — E ela o abraçou. — É estar ao seu lado que me
dá forças para sobreviver a essas situações.
Ele
lhe sorriu.
—
Não! Não é. Sobrevive a essas coisas, porque é uma mulher forte, perseverante,
inteligente…
—
Inteligente, é?
— A
maior prova da sua inteligência é que escolheu a mim como namorado.
Os
dois riram.
—
Cachorro!
E
ele a abraçou, rosnando e mordendo de leve o seu pescoço.
—
Não, Rainen! Não! — eram gritos misturados com risos. — Pelo amor de Deus!
A bagunça feita pelos dois chamou a atenção dos
convidados mais próximos, que se alegraram com a felicidade dos noivos. Da sua
mesa, Taíde e Inês viram o casal e se colocaram de pé, para a surpresa de
todos. Tranquilos, caminharam até os dois.
—
Sei que não são da família, mas são bem-vindos — saudou Taíde.
—
Somos gratos! — agradeceu Rainen.
—
Desculpe se nos achegamos até aqui, mas a aura que emana de vocês nos convidou,
pois é bem parecida com a que cultivamos. — Inês sorriu.
—
Tem sido assim na maioria de nossos dias. — Renata sentiu vontade de fazer uma
reverência.
Todos
na festa pararam o que faziam atentando para aquele diálogo.
— É
sempre assim. Mas isso precisa de especial atenção, ou perece.
— E
o que podemos fazer para que o sentimento se mantenha e, até mesmo, cresça?
Inês
se aproximou e tomou a mão de Renata.
—
Viva intensamente a cada dia. Entrega o teu coração sem medo, pois ele é um bom
rapaz. — E olhou para Rainen.
—
Obrigado por suas palavras.
Ela
se voltou para os convidados.
—
Então, parentes e amigos, é isso! O amor é leve como uma brisa, mas o seu furor
é impetuoso como uma tempestade. Não o temam, mas também não o despertem sem que este o queira. — Voltou até
Renata e a abraçou, cochichando: — Seja forte. Você ainda não passou por sua
maior provação.
Taíde
e Inês voltaram para a sua mesa sob aplausos e palavras dos familiares. “Longa vida a Inês e Taíde!”, “Sábias palavras as de Inês, dizem ter a
herança druida em sua linhagem!”, “Por
isso a família é tão próspera!”, “Ah
não! Não trouxeram o queijo da Córsega?” (Certamente esse foi Tony), “Compense com cerveja, homem!”, alguém o
consolou.
A
festa continuou bem mais animada: danças, brincadeiras, sortes, comidas e
bebidas, e uma das que mais se divertiam era Margareth, claro que com Astor ao
seu lado, pajeando-a.
—
Vamos pegar maçãs?
— É
uma boa ideia? Digo…
—
Astor, as maçãs estão boiando na tina de água. É só pegar com a boca.
Ele
olhou para ela, para a barriga e se deu por vencido.
—
Tudo bem! Mas não fica se abaixando muito.
Impressionante
a habilidade e o fôlego que ela tinha para pegar as frutas. Foram três em menos
de um minuto. O rapaz nem teve tempo de se acalmar. Margareth olhou para o lado
e viu crianças pulando corda.
—
Vamos?
—
Você não deveria guardar repouso?
—
Amor, isso é para depois do parto.
—
Ah, tá!
Ela
riu.
— E
eu fazia pugilismo. Sabia que lá pulamos corda para melhorar a musculatura dos
membros inferiores? — E cochichou em seu ouvido: — Como acha que te dou aquelas
prensadas com as pernas?
—
Ok! Mas não fique muito tempo.
Indo
para lá, passou um garçom com a bandeja cheia de canecas de cerveja. Ela puxou
uma, dando um grande gole e a entregando para Astor.
—
Segure pra mim — pediu ao parar entre as cordas e levantar um pouco o vestido.
— Comecem devagar, crianças.
Enquanto
pulava, ela olhava para Astor, fazendo-lhe reverências, movendo braços, pernas
e quadril, como numa dança. Astor não conseguia se acalmar. Num descuido, ela
tropeçou no próprio vestido e ia caindo, quando ele avançou em sua direção e a
segurou.
—
Está tudo bem? Você? O bebê? O que aconteceu? Vou chamar um médico. — Ele
estava nervoso.
—
Calma, amor. Apenas tropecei na saia. Considere que, na academia, eu uso short.
— E sorriu.
—
Está me deixando louco de preocupação.
— É
bom saber que você está tão preocupado, mas se acalme um pouco. — Ela o abraçou
e beijou.
Bruna
acompanhou a cena, o que só piorou os sentimentos e a percepção da garota, que
quase implorou ao namorado:
—
Vamos embora?
—
Bruna, você tem noção do que está me pedindo? — Marcus não se dispunha a deixar
a festa.
—
Não quero ficar. Me chama um táxi?
— É
claro! — E ele solicitou para um dos rapazes.
O
transporte chegou em 5 minutos, em mais 25 minutos, ela desembarcava na porta
de casa.
—
Bruna? — a mãe tentou conversar.
— Não quero falar com ninguém.
Correu para o quarto e bateu a porta. Ficou ali, em pé, no escuro, olhando para o seu armário. Lentamente caminhou até ele e abriu uma das portas. Dali retirou uma pequena trouxa. Ela aspirou do perfume que ainda exalava das peças e se despiu, deitando-se na cama. Nua, a abraçou e se cobriu com o edredom, tendo um único desejo: esquecer aquele dia.
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