Ichiria - 001 - 1º Encontro

 

 

Naquele momento, dentro da sua cela, Ichiria sentiu um cheiro forte, muito forte mesmo, de algo azedo. Lentamente ela se virou de um lado para o outro, tentando captar melhor de onde vinha. Quando captou a essência no ar, foi tateando as paredes do quarto, até que encontrou uma passagem que a retirou de Wikário, podendo dizer assim que ela “fugiu” da sua cela e, estranhamente, chegou a uma dispensa:

“Será essa uma das artimanhas de Lúcifer?”

Não que o lugar fosse pequeno. Ela é que era muito grande em sua forma natural: 4 metros de altura. Então, por aqueles instantes e para caber naquele local, Ichiria diminuiu o seu tamanho. E aí acessou o apertado cômodo onde o cheiro era intenso:

“Leite azedo.” — avaliou.

Dali consegui ouvir uma conversa vinda do lado de fora:

— Não há o que fazer. É um caminho sem volta.

— Eu não consigo pensar claramente nas consequências. Só consigo pensar nela.

— Se é assim pensa no bem estar dela.

— Fácil assim? Não creio.

— Mas é disso que se trata: ela. Você vai fazer todo e qualquer sacrificio por ela. Pensa mais um pouco.

Na sequência Ichiria ouviu passos, o barulho de algo desligando e depois uma porta abrir e se fechar.

“Claramente existe um jogo de interesses em curso.”

Furtiva, não que precisasse, ela grudou na parede, e escalou o portal, saindo da dispensa atravessando a porta. Na sua forma espiritual ela não podia ser vista. E logo ela entendeu isso. Mas, mesmo que pudesse, fazia o possível para não sê-lo: sua roupa preta era totalmente de tecido, deixando à mostra apenas a cabeça onde se via, entre os grandes e belos cabelos pretos e os seus chifres curvados para trás, uma faixa vendando os seus olhos. Em alguns pontos da roupa, como ombros, antebraços e canelas havia peças de metal revestidas por couro para que não fizesse qualquer barulho. Entre alguns cintos de couro na sua cintura ela tinha uma discreta pochete onde guardava outros itens. Assim Ichiria começou a se mover pelo quarto muito escuro às vezes pelo teto ou pelo chão, mas preferindo ficar próxima das paredes. Desse modo ela absorvia a energia do lugar fazendo uma análise superficial. Aqueles movimentos levaram um frio inesperado para dentro do cômodo, incomodando o rapaz que estava desorientado:

— Será esse o meu fim?

Ichiria ouviu o que ele falou, mas não entendeu nada:

“Tenta se comunicar?”

Sem ver ou ouví-la o rapaz continuou divagando e lembrando da garota:

— Você é realmente muito linda.

“Então esse deve ser um humano. Tem a mesma aparência de Deus.”

— Loira e bonita como um anjo.

“Se ele é um humano, então estou na Terra.”

— Como será se nos unirmos pelo sagrado matrimônio?

“Já ouvi histórias pelas vozes de Wikário.”

— Você parece ser bruta, ser nervosa, e carregar alguma coisa ruim em si.

“Estarei condenada a vagar por aqui sem sequer entender o que eles falam?”

— Mesmo assim, se eu te desse o meu amor, você me amaria de volta?

“Estranho. As coisas que ele está falando ressoam na minha energia. Mesmo sem entendê-lo eu tenho vontade de parar e ficar ouvindo.”

E foi isso que Ichiria fez. Sem ser vista, parou bem na frente do homem sentado na cadeira.

— Mas o amor seria capaz de te transformar?

“Porque será que ele está aqui…” — E percebeu o homem se levantar do móvel e se ajoelhar diante dela. — “O que ele está fazendo?”

“Deixa ver como fica.” — ele pigarreou — Sei que nada é fácil. Você não teria porque acreditar em mim já que a gente pouco se conhece. Mas eu te vejo, eu te sinto, e gostaria de te conhecer melhor, independente das nossas diferenças. E, quem sabe, possamos viver um com o outro, satisfeitos, plenos, realizados, desse momento até o fim. Você aceita o meu pedido de namoro?

E abriu a singela caixa exibindo, para a demônia, uma grossa aliança de prata.

Ichiria não entendeu absolutamente nada no que ouviu, mas as palavras dele eram como deliciosos afagos aos seus ouvidos, gerando um bem estar que ela sentiu muito tempo atrás, bem antes de ser aprisionada em Wikário. E aquilo foi mais que suficiente para fazer com que percebesse o rapaz de uma forma diferente. A posição de submissão, os movimentos serenos, as palavras reverberantes. Mais que isso, a jóia no interior da caixa tinha um significado: era uma aliança. Não que ela enxergasse, mas a luminosidade e a essência da jóia se comunicavam com ela e, sem que ele se desse conta, Ichiria se aproximou mais e, com um olhar de superioridade ela pronunciou:

“Eu-eu aceito.”

Ela nem ouviu as próprias palavras, mas, imediatamente, a aliança surgiu no seu dedo anelar direito e Ichiria sentiu algumas alterações em sua consistência, as quais ignorou. Então ouviram a chave e a maçaneta da porta serem movidos e a porta se abriu.

— Ei Romeu. Se decidiu? — o homem entrou acompanhado por outro que tinha uma metralhadora.

O rapaz já tinha fechado a caixa e agora estava de pé.

— Se isso vai salvar a vida da minha mãe, eu aceito.

— Então vamos. Estamos atrasados para um casamento.

Ele foi cercado por outros homens fortemente armados. Os grupos entram em dois carros parados debaixo de uma árvore e, sob a atenção da demônia, saíram da propriedade.

“Onde estará indo?” — Mas o novo objeto brilhou em seu dedo, liberando leve energia e lhe roubando a atenção: — “Provavelmente retornará. Aguardarei.”

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