O dia começou radiante.
Desde o seu despertar às 5h da manhã, passando banho, os cuidados com os cabelos,
a aplicação de cremes hidratantes específicos para cada parte do corpo, as
fragrâncias tão perfumadas e as roupas tão cuidadosamente escolhidas. Havia um
êxtase em seu peito.
“Acalme-se! Acalme-se!”
Dizia para si enquanto
pegava a chave do carro.
Naquele dia a padaria parecia
estar mais impecável do que nunca. O pão com manteiga estava maravilhoso. O
café preto, divino. Tudo extremamente delicioso.
O trânsito. Ah! O trânsito.
Simplesmente não havia. Assim, viu ruas largas de um asfalto perfeito, com meios-fios
regulares, acompanhado por calçadas e gramas, intercalando com praças e
estabelecimentos que ela percebia só agora.
Olhou para o relógio no
painel do veículo:
“6h30. Vou chegar com
folga.”
Mais que isso. O
estacionamento frente ao prédio da empresa estava vazio, e ela pode escolher o
lugar. Mirtis quase gritou de felicidade ao estacionar o veículo na vaga que
sempre quis. Antes de descer, um último retoque na maquiagem. E desembarcou do
carro, radiante e, como se desfilasse, caminhou rumo ao porteiro. Parando
próximo a ele, se sentindo a própria Rainha
de Sabá, decretou:
— Astodolfo, abra!
Observando aquela
movimentação inesperada, ele retrucou:
— Mas, dona Mirtis…
Ela se regozijou por dentro
ao ver a submissão estonteada do homem.
— Não há nada de “mas”,
Astodolfo. Apenas… abra.
Ele ainda tentou:
— Deveras?
O olhar dela foi frio e
enervado:
— Ainda questiona, homem?
Não sabe que agora sou a nova sub-gerente de operações?
O jovem senhor sorriu,
fechando o jornal e o deixando sobre a cadeira.
— Meus parabéns, dona
Mirtis! — Não só apertou-lhe a mão, como a abraçou. — Meus parabéns!
Ela ficou pouco sem graça
com a atitude do jovem senhor, mas conseguiu constatar:
“Ao menos não fede.” — Ela
fechou o semblante mais uma vez e pronunciou. — Certo! Agora abra!
Astodolfo voltou à guarita,
entrou e apertou o botão que acionava as catracas. Ela sorriu passando o crachá
no leitor e cruzando o equipamento. Em seguida fechou o semblante:
— Obrigada!
Mirtis sentia seus “poderes”
mas, após alguns passos, parou, motivada por alguma sensação de estranhamento
como se estivesse montando um quebra-cabeças e soubesse qual a peça precisava
naquele instante, porém não a encontrava. Isso a fez dar meia volta, retornando
ao homem que se sentara, mas permanecia com o olhar atento a ela e seu corpo
curvilíneo.
— Astodolfo, percebi que o
senhor precisou ligar o sistema das catracas para me dar acesso. — ele ouvia as
palavras como se tivesse enfeitiçado — Eu sou a primeira a chegar?
— Sim…
Ele mal fechou a boca
confirmando e ela metralhou:
— É inadmissível uma
situação dessa. Como ousam um tamanho desrespeito? Não é uma falta de
profissionalismo? Uma falta de preparo? Me diga senhor Astodolfo, existe uma
justificativa?
O vigia mantinha o olha de
fascínio, causado pela imponência da mulher, e levou algum tempo para fazer uma
“colagem mental” com o que conseguiu captar das palavras dela, processou e
respondeu:
— Teria alguma ligação com o
fato de hoje ser domingo?
Para Mirtis, aqueles foram
segundos sabáticos, um momento holístico, como se sentisse uma luz de sabedoria
brilhar em sua mente, afastando as sombras da ignorância, elevando-a ao estado
de nirvana. Contudo ela queria manter
aquilo só pra ela. Então sorriu com o canto da boca e limitou-se a dizer:
— Necessito de férias.
Com a delicadeza e a precisão
cirúrgica de uma motosserra em uma intervenção cardíaca, Astodolfo disparou:
— Mas já?
Para ela, aquele foi um dia
a ser esquecido.
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