Ardes - Capítulo 032


Era fim de ano, os dias passavam rápido. E foi num piscar de olhos que o dia 31 de dezembro chegou.
Rainen guiava a caminhonete com maestria, acostumado com o barulho e a potência usual. Dentro da cabine, os ocupantes pouco sentiam as imperfeições da estrada. Letícia admirava o filho, e, precisando desabafar, quebrou o silêncio:
— Você se tornou um homem.
— Por que diz isso?
— Vejo como amadureceu, como encarou as responsabilidades, o planejamento, a paciência.
— Não tive outra escolha. Se não o fizesse, estaríamos em dificuldade.
— Hoje você trabalha, paga suas contas… — Ela fez uma pausa. — … tem uma pretendente.
— É… — Nesse assunto ele se fechava um pouco.
— Ela gosta muito de você — pontuou Letícia.
— Eu também gosto demais dela.
— Percebeu que a família dela te aceitou?

— Sim.
— E não vai tomar nenhuma atitude?
O veículo passou pelo portão do condomínio e os dois desembarcaram sem que ele respondesse. Só o fez quanto pararam à soleira da porta.
— É que, às vezes, fico pouco sem ação.
E tocou a campainha. De onde estavam, ouviram os passos de alguém que se aproximava pelo lado de dentro. Rainen não conseguiu manter a feição feliz ao ver Bruna abrindo a porta. A moça também fechou seu semblante.
— Você aqui…
— Sejam bem-vindos, Rainen e Letícia! — saudou Mario, interrompendo a filha.
A garota saiu da porta e, passando pelo pai, bufou irritada.
— Poderia ao menos ter me avisado.
— Por que isso, Bruna?
A mãe questionou, mas a moça ignorou, indo para o seu quarto. No caminho, encontrou Renata:
— Está tudo bem?
— Estava, antes de o seu comedor de graxa chegar! — E bateu a porta.
Lá embaixo o casal recepcionava os recém-chegados.
— Ela tem estado assim nos últimos dias. É muito estudo e pouca diversão.
— Sei mais ou menos como é isso…
Rainen não conseguiu dizer mais nada. Seus sentidos foram direcionados para a moça que descia a escada. Um silêncio se fez ao redor, ele admirava cada detalhe da garota: a forma do cabelo preso num rabo de cavalo; o rosto belo e resplandecente; o busto oculto por uma blusa estampada e folgada; a calça jeans justa, que realçava as curvas do quadril; a sapatilha azul que lhe chamava a atenção.
Quando os olhares se cruzaram, ambos se aproximaram.
— Rainen…
— Renata…
Disseram quase ao mesmo tempo. E seguraram as mãos um do outro, aproximando-se e sentindo o calor, a fragrância, a emoção… até que pararam e, olhando para onde estavam seus pais, viram o grupo com olhares aflitivos, na iminência de um ato a mais.
O casal ficou pouco sem graça, mas Mario aproveitou a oportunidade.
— Rainen, olhe essa moça que está à sua frente. Acho que ela quer ouvir algo de você.
O rapaz olhou para a mãe, meneou a cabeça confirmando. O grupo deu as costas e foi para a cozinha.
Quando Rainen olhou novamente para Renata, os corações palpitaram, com ambos sendo tragados para a profundidade de um sentimento há muito ocultado. Ele foi direto:
— Renata, você aceita namorar comigo?
Ela fez uma pausa, buscando as melhores palavras, e as sussurrou em seu ouvido:
— Eu já o aceitei há tempo, não percebeu?
Ele parecia assimilar o que ouvia com o que sentia. Então segurou-a pela cintura e puxou-a para si, enquanto ela cruzava os braços por trás do pescoço do rapaz.
— Percebi sim.
— E por que demorou tanto?
— Eu…
Porém ela o silenciou com um beijo apaixonado, suave, mas firme. Rainen correspondendo à investida, sentia o sabor adocicado dos lábios de sua amada. Foi depois de alguns minutos que conseguiram parar, mas com aquela sensação de quero mais.
— Vamos nos juntar a eles? Estão na cozinha, com os ouvidos atentos ao que fazemos. — Renata riu.
— Espere! Eu quero te dar algo.
De dentro do bolso, ele pegou um pequeno embrulho de tecido. Desdobrou as pontas e, assim, apareceram duas peças de um cromado reluzente.
— Alianças?
— Agora, sim, mas antes eram peças de um motor. Não arranham, amassam ou danificam. São praticamente indestrutíveis.
Renata olhava-as, sem conseguir piscar.
— Você as fez?
— Eu as adaptei para que nos servissem.
Tudo aquilo deixava Renata em êxtase, pois agregava um valor inestimável aos itens. Ele então colocou a aliança em seu dedo e a outra no dedo da garota, que sorriu, e foram para a cozinha. Quando chegaram lá, Bruna desceu as escadas toda produzida e avisou:
— Estou indo para a casa de Mirela e Fernanda.
— Não quer mesmo ficar conosco? — perguntou o pai.
A garota olhou para Rainen, respondendo:
— Já havia marcado com elas. — E foi à direção da porta.
— Tudo bem. — Mario não quis tumultuar as coisas.
Bruna saiu pisando duro e com cara de poucos amigos. Em mente, as suas intenções:
“Desgraçado! Mas isso vai acabar. Me aguarde!”
E passou pela porta. Ali fora, o carro que a levaria manobrava.
Na cozinha, Elizabeth convidou:
— Os petiscos estão prontos — disse, retirando duas bandejas do forno.
— Optamos por uma coisa menos formal, mais íntima, pois aqui somos to-dos fa-mí-lia — soletrou as últimas palavras olhando para os jovens e sorrindo.
Então Rainen e Renata se levantaram:
— Senhor Mario e senhora Elizabeth, eu gostaria de pedir a mão de Renata em namoro.
Ao ouvirem o pedido oficialmente, os pais se levantaram, abraçando-se e felicitando-se pelo acontecido. Por fim, abraçaram e parabenizaram os jovens.
— Nós a concedemos e o aceitamos em nossa família, Rainen — Mario fez a observação. — Belas alianças.
— Obrigado, senhor!
E a noite seguiu agradável e animada, regada a frutas, vinhos e espumantes, além de aperitivos. Mas uma ceia os aguardava, e, quando o momento chegou, observaram como ambos se portavam. Sentados lado a lado, o diálogo era constante, alternando entre os dois e o grupo. Contudo coisas aconteciam diante dos presentes. Como quando ele teve sede, e ela já segurava o copo com água na mão, ou quando ela quis mais farofa e ele já a servia. Era uma sintonia presente às almas predestinadas.
Não comeram muito para não se sentirem cheios, e logo veio a sobremesa:
— Pavê! — entusiasmou-se Letícia.
— Esperem! Esperem! — Mario solicitou, sério, e se colocou em pé. — Se alguém fizer aquela piada sem graça, vai ficar só olhando mesmo.
Todos riram e, em seguida, se serviram.
— Está delicioso, Elizabeth — disse Rainen quando se serviu mais uma vez.
— Obrigada, mas o mérito é da Renata.
A garota corou quando os olhos de Rainen pousaram sobre ela e, de imediato, o abraçou.
— Está do seu agrado?
— Nem consigo expressar o quanto!
Após a refeição, Renata foi ao quarto e voltou com um envelope nas mãos. Da porta da cozinha, chamou o rapaz e ambos foram para a sala. Ela lhe mostrou.
— E o que tem aí? — questionou curioso.
— É uma carta da universidade Hasuvap.
— E o que diz?
— Deixe-me ver.
E rasgou o envelope, tendo acesso à folha.

SENHORITA RENATA ANDRADE,

VENHO DIZER-LHE QUE ESTAMOS IMPRESSIONADOS COM AS SUAS NOTAS E TRABALHOS EXTRA-CLASSE NO CURSO DO ENSINO MÉDIO, ALÉM DE SUA HABILIDADE COM OUTROS IDIOMAS. PORTANTO, INFORMAMOS-LHE QUE É DO INTERESSE DA HASUVAP QUE SE INTEGRE AO CORPO DE ALUNOS. HÁ UMA GAMA DE CURSOS PRÉ-SELECIONADOS E QUE TÊM SINTONIA PROFUNDA COM O QUE OBSERVAMOS. ESCOLHA UM DELES E VENHA FALAR CONOSCO.

CURSOS: GEOGRAFIA, HISTÓRIA, LETRAS, TURISMO, SECRETARIADO EXECUTIVO, PEDAGOGIA, CIÊNCIAS POLÍTICAS.

ATT.,
REITOR IVAR MORAIS.

— Deixa ver se eu entendi… Eles estão oferecendo a vaga para que você estude lá? Com tudo pago?
— Sim, para as duas perguntas. — Ela sorriu.
— E para eu compreender melhor… Qual foi a sua menor nota no ano passado?
— Tirei um 9,75 em física… — disse um pouco triste.
— Ah, física é bem detalhista…
— Exato — ela concordou, interrompendo-o —, eu coloquei uma vírgula no lugar errado.
— Retiro o que disse. E mais, agora entendo por que estão te procurando. Sua irmã também é assim?
Renata suspirou, respondendo:
— Ela é mais.
— Caramba!
Impressionou-se o rapaz.
— Mas, voltando ao meu caso, gostaria da sua opinião sobre a graduação.
Rainen ponderou por alguns instantes e falou:
— Precisamos considerar que, assim, definiremos a sua vida profissional.
— Concordo.
— Façamos uma tentativa. — E perguntou: — O que gosta de fazer?
— Gosto de História e idiomas.
— Pedagogia seria bom? — ele arriscou.
— Queria algo mais livre.
— Como a escrita?
— Com um pouco mais de compromisso — ela rebateu.
Ele ponderou mais um pouco, mas parou:
— Não dá pra fazer isso agora.
— Por quê? — ela questionou, curiosa.
— Bem, tenho que te confessar que — disse sério e depois riu —, hoje à noite eu arranjei uma namorada e não estou com cabeça para outros assuntos.
— Ela dever ser uma moça muito sortuda.
— Realmente, mas eu acho que o sortudo sou eu — disse, beijando a mão de Renata.
A garota puxou-o pelo pescoço e os lábios se tocaram:
— Beijar a mão não vale — ela disse e riu.
— Tudo bem. — E ele voltou ao assunto anterior: — Eu vou pensar melhor sobre as opções de cursos que foram ofertadas, e então nos reuniremos.
— Obrigada pela ajuda. — Ela o encarou.
— Sempre… — Ele devolveu o olhar cúmplice.
E juntos voltaram para a cozinha, no exato instante em que Mario contava:
— Dez… nove…
E todos contaram juntos:
— Oito… sete… seis… cinco… quatro… três… dois… um… — E gritaram juntos: — Feliz Ano Novo!
O ano prometia.

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