Demonstrava haver uma constante penumbra ao seu redor, e, mesmo
durante o dia, a claridade parecia fraca e insuficiente. Com o passar do tempo,
a fome e a sede foram diminuindo, junto com a simples necessidade de interagir
com sua família. Agora vivia os dias reclusa em seu quarto e as noites eram de
vigília, como se esperasse por algo que nunca chegava.
Não tinha coragem para pedir a seus pais, tampouco havia força
para impor o seu desejo. Então deixou por assim ser e, aos poucos, o sentimento
que a alimentou e a fortificou, agora, era o mesmo que a devorava de dentro
para fora.
Eram 19h e a família jantava. Os pais, aflitivos, nada falavam e
preferiam não comentar o problema diante de Bruna. Mesmo assim, a garota
reservava seus próprios pensamentos:
“Maldito e desgraçado. Só pode ter enfeitiçado minha irmã.”
Terminada a janta, os pais subiram para ver como se sentia Renata.
— Precisa reagir, minha filha.
— É uma batalha perdida, minha mãe.
— Não pode se entregar.
— Pai, é maior e mais forte que eu. — E chorou. — Desculpe, me
desculpe.
Saíram do quarto consternados e em silêncio. Tinham para si que,
talvez, com a proximidade do Natal, a garota se animasse. Contudo os dias foram
se passando e Renata não esboçava reação, ao contrário. Nas poucas vezes que
saía do quarto, ainda vestida com o pijama, ficava por horas sozinha, sentada
no banco do quintal, com um olhar perdido e distante, como se nem ali
estivesse.
— Temo ser depressão. — Elizabeth tinha o semblante entristecido
pela situação da filha.
— Façamos o que for necessário.
E, naquele fim de noite, elaboraram a lista com os parentes e
amigos mais íntimos. Tentariam uma ação de choque para animá-la. Focados com os
preparativos para o Natal, cinco dias se passaram rápido. Naquela manhã, Mario
e Elizabeth foram ao quarto da filha, exigindo que ela participasse.
— Seria uma grande desfeita para com os convidados — pontuava o
pai.
— Precisamos do seu sorriso na comemoração — pedia a mãe.
Foi depois de algum tempo que ela respondeu:
— Não se preocupem comigo nem deixem de se divertir por minha
causa. — Fez uma pausa longa. — Farei o possível para me juntar a vocês.
Não era exatamente o que queriam ouvir, mas aplacou-lhes a
angústia.
E Renata não mentiu. Foi com tremendo esforço que, às 17h, ela se
levantou da cama e se banhou. Enquanto se penteava, ouviu a irmã falando com os
pais:
— Vou e volto bem rápido. Já estão me esperando.
— Talvez isso ajude. Vá, mas volte logo!
Com essa autorização, Bruna levaria adiante os seus intentos.
Renata terminou de se arrumar e desceu. O vestido era de cor
alaranjada, contrastando com uma faixa e sapatos de cor amarela. O conjunto
combinava e realçava-lhe a cor dos cabelos e dos olhos, mas ela caminhava com
dificuldade e parecia que algo lhe faltava. Seus olhos estavam opacos e o sorriso
inexistia.
Minutos depois, parentes e amigos chegavam, e vinham com
felicidade e esperança, afinal, esse era o espírito da data. E a casa, mesmo
pequena, abarcou a todos e se mostrou aconchegante. O cheiro da comida tomava
todo o lugar. Bebidas eram servidas; em cada canto, uma história diferente.
Em instantes, Bruna chegou com um grupo que se aproximou. Eram os
seus antigos conhecidos. Riam e brincavam com Renata, que se mantinha esquiva.
Toda aquela felicidade alheia a
incomodava naquele instante.
— Preciso ir à cozinha — mentiu.
Ela passou pelo cômodo e foi para o quintal. Eram poucas as
pessoas ali. Procurou um canto e se sentou. Na calmaria da noite, ouviu o som
alto de um motor, que parou em algum lugar próximo da frente da casa. Ela o
ignorou.
Naquele momento, alguns do grupo trazido pela irmã, a localizaram
e a cercaram.
— Se anima, garota! — disse um deles.
— Até que é bonitinha a sua casa. — Um dos rapazes foi sarcástico.
— Vamos, Renata, é para nos divertirmos — Bruna tentou motivá-la.
Várias meninas riam.
— Quero dançar. — Valter a puxou pela mão. — Vem comigo!
Irritada, ela o empurrou:
— Me deixe em paz! — pediu inutilmente.
Mais risadas à sua volta, contudo, uma voz foi clara:
— Se colocar a mão nela mais uma vez, eu vou te partir a cara, imbecil!
Todos se calaram e olharam para quem deu o comando. O rapaz vestia
calça jeans, sapatos e cinto pretos. Uma camisa branca estava semioculta sob
uma jaqueta marrom. Assim ele surgiu.
— Rainen!
Renata correu para ele e o abraçou, mas ele mantinha um olhar
ameaçador para Valter, que sentiu a possibilidade da agressão. Ainda tentou
manter sua postura, mas Rainen deu um passo em sua direção, mesmo arrastando a
garota, e, ciente disso, Valter e o grupo retornaram para dentro da casa.
“Droga!”
Bruna se irritou com o que viu.
— Rainen! — chamou novamente Renata.
Só então ele deixou de encarar Valter e o grupo em sua saída para
focar seu olhar na garota.
— Calma, calma! O que você tem?
— Aquele babaca te tocou — disse, ainda alterado.
— E isso te deixou nervoso?
Olhos nos olhos, o toque na pele, a fragrância que vinha dela…
— Deixou… sempre vai deixar. — Ele fez uma pausa e tentou sorrir.
— Mas vamos mudar de assunto.
Enquanto se recompunham, Bruna entrou correndo, procurando seus
pais.
— Aquele bronco está aqui!
— disse ao encontrá-los.
— Onde? — limitaram-se a perguntar.
— No quintal.
— Fique aqui e seja a anfitriã por alguns instantes, já voltamos —
pediu a mãe.
Apreensivo, o casal foi para os fundos da casa. Lá chegando,
presenciaram a cena. Rainen e Renata estavam sentados no banco, apreciando a
noite e as estrelas. A garota se apoiava nele, que lhe dava firmeza. Então
Mario pigarreou e o jovem casal se voltou para ele.
— Boa noite, senhor e senhora Andrade.
— Boa noite, Rainen.
Observaram que Renata não saía do lado do rapaz e parecia haver
algo profundo que os deixava conectados, unidos.
— Está tudo bem? — perguntou Elizabeth.
— Agora sim, mamãe! — respondeu Renata. — Agora sim!
— Também acho que sim. — Sorriu o pai.
Juntos, voltaram para dentro da casa, deixando a filha e o rapaz
por ali.
A festa seguiu até a madrugada e, nesse período, Renata e Rainen
não se desgrudaram e conversaram sobre o futuro e o que fariam. Essa conversa
gerou cumplicidade a eles.
— E agora que o seu curso acabou?
— O primeiro passo é me apresentar ao exército, coisa que farei em
menos de um mês.
— Pensa em seguir carreira?
— Eu? Como militar? — Ele fez uma careta. — Acho que não.
— É certeza, soldado? — Renata falou, prestando continência, e os
dois riram.
— Mas vou avaliar todas as possibilidades, vai que surge algo
interessante lá dentro.
— E tem um plano “B”? Trabalhar por conta própria, por exemplo?
— Você lê mentes? — Gargalharam. — Era o que eu estava pensando.
— Faz todo o sentido. Você tem o que é necessário para empreender.
— Está em pauta. Mas falamos muito de mim, e você? Tem planos?
— Tenho vários, mas, no momento, priorizo apenas um. — E o encarou
com forte sentimento.
Percebendo, ele perguntou, um pouco cômico:
— Tem algo a ver comigo?
— Um percentual… — ela disse mostrando falso descaso.
— Quantos porcento?
— Cem porcento — disse Renata.
Ela riu, ele não.
— Foi por isso que ficou tão mal?
— Sim. — Ela foi franca.
Os últimos convidados saíam acenando e se despedindo. O único que
permaneceu, e que não pertencia à família, foi Rainen.
— Exatamente o que o seu pai me disse quando me procurou na
oficina.
— Ele esteve lá?
— Estive e retornaria quantas vezes fossem necessárias — disse
Mario, se aproximando junto com a esposa —, pois nos preocupamos com você.
— Já é tarde. — A mãe deu a entender.
— É… está na minha hora — disse Rainen, um pouco desconcertado.
— Mas já? — Renata se entristeceu. — Eu… eu te… vejo novamente?
— Eu acho que…
— Eu sei que ele precisa retornar em dois dias para dar uma olhada
no meu carro — Mario disse, interrompendo a fala do rapaz e piscando para a
filha.
— Pode contar comigo, senhor Mario.
— Obrigada, pai!
— Está agradecendo por minha limitação em mecânica? — E riu. — Não
te entendo.
— O senhor suspeita qual seja o problema? — Foi prático o rapaz.
— Bem, toda vez que giro a chave, o carro faz um barulho enorme e
fica tudo tremendo. Mas não precisa se preocupar com isso agora.
— Tudo bem! Eu olho para o senhor.
— Renata, acompanhe-o até a porta. — Elizabeth piscou para a
filha. — Estamos muito cansados e precisamos repousar. Boa noite!
O casal entrou e subiu para o quarto.
— Está na minha hora. Vou nessa.
— Tem carona ou quer que eu chame um táxi?
Ele achou graça com a preocupação.
— Preciso te mostrar uma coisa.
— O que é?
— É surpresa. Está lá na frente.
— Então vamos. — Ficou ansiosa a garota.
Na frente da casa, Bruna e seus amigos conversavam recostados em
dois veículos conversíveis e de belo estofamento branco. E quem falou foi
justamente a garota:
— Ora, ora! Vejam só se não é o colega de minha bondosa irmã? —
Bruna se negava a pronunciar o nome do rapaz. — Vai caminhando para casa ou
quem sabe com uma carroça?
Todos riram da gaiatice da garota.
— Ignore isso. — Renata mantinha um olhar doce enquanto falava. —
Considere tudo o que nos aconteceu hoje.
E suas palavras o acalmaram, não de todo, mas o acalmaram.
— Espere aqui — ele pediu.
Em seguida, correu para de trás de um arbusto.
— Que coisa feia, urinando na frente da garota — disse um da roda.
Mas isso ele não ouviu. Ao contrário, quem ouviu foi o grupo.
Primeiro o som de uma porta de carro se fechando, depois o barulho da partida
de um motor. Então olharam para onde o rapaz correra e luzes muito fortes
irradiaram, iluminando o caminho. De lá, veio a reluzente caminhonete que, ao
focar suas luzes no grupo, ofuscou e cegou-os momentaneamente.
Ele parou o veículo próximo a Renata, dizendo:
— Olha o meu trabalho de conclusão de curso.
— E é sua?
— Sim. Presente de um amigo.
— É linda.
— Mas perde pra você. — Ele sorriu, um pouco encabulado. — Depois
eu te mostro ela por inteiro.
— E quero ver cada detalhe.
— Combinado.
Tudo aquilo sob os olhos e irritação de Bruna, que pensava
consigo:
“Maldição! Onde ele conseguiu aquele carro?”
Mas ela não teve tempo para outras confabulações. Renata voltava
para casa quando o motor da caminhonete rugiu, emparelhando com os outros
veículos, e ali quase parou. Assim que a garota fechou a porta da casa, Rainen
pisou e segurou o pedal da embreagem, engatando a primeira marcha; em seguida,
fez o mesmo com o pedal do acelerador e o motor chegou à sua potência máxima; o
carro urrou como uma besta enfurecida. Rainen soltou a embreagem e a força foi
transmitida para os eixos traseiros, que giraram as rodas, lançando cascalho e
terra, que sujaram o grupo e os veículos.
— Merda!
A revolta de Bruna só aumentava.
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