Ardes - Capítulo 109

 

Era fevereiro e Onofre se sentia o próprio abastado, o bem-afortunado, o sortudo. Tudo porque, agora, não tinha que dar qualquer satisfação da sua vida, nem para sua esposa nem para o seu filho, que, empenhados com o trabalho, o deixaram em paz.

Naquele dia, ele caminhava sentindo uma leveza na alma, um benfazejo mental, uma paz de espírito tamanha que até cantarolou. O seu destino? Ora, o mesmo de todos os dias: o bar do Macaio. Antes passaria na padaria, que ficava bem próximo do seu objetivo final. Gostava de comer um filãozinho com café, assim ele chamava o pão de sal. A esposa deixava pronto em casa, mas ele fazia questão de rejeitar.

Olhou para cima e leu na placa:

— Panificadora Nilo.

A verdade era que Onofre sempre achou aquele nome propício para o estabelecimento. Afinal, segundo um livro, foi no Nilo que ocorreram as pragas do Egito. E ele nunca viu tantas moscas como naquele lugar. Parece que, logo depois de assolarem o povo egípcio, elas se aboletaram ali.

Não tinha problemas com isso. Gostava muito da massa dos pães dali.

— Um pão e um café — pediu à atendente.

Em minutos, a mocinha, solícita e educada, lhe entregou o pedido. Naquele dia estava tão bom que repetiu. Enquanto comia, observava a movimentação em volta: estudantes, trabalhadores, homens, mulheres, todos com suas vidas, suas necessidades de comer e seguir para algum lugar. Certamente o único que sairia dali para o bar seria ele.

Onofre pagou e foi para a rua. O clima ameno daquela manhã o fez respirar fundo, puxando o ar puro, um pouco frio e revigorante. Espreguiçou-se. Então ouviu um murmúrio, em seguida, uma sirene em som crescente. Olhou para o lugar de onde vinham os barulhos e viu o grupo de pessoas na frente do bar. Correu para lá temendo pelo pior. Chegou com os paramédicos, que entraram com equipamentos em punho. No chão, o homem se debatia, gemendo de dor, com lágrimas saindo pelos olhos e algum líquido pela boca. As mãos pressionavam as laterais do abdômen.

— Badé! — Onofre se desesperou vendo o colega naquelas condições.

A equipe de resgate o imobilizou na maca e o colocou dentro da ambulância. Um dos socorristas o interpelou:

— O senhor conhece a vítima?

— Conheço sim.

— Pode acompanhá-lo?

Nem respondeu. Pegou os pertences do amigo e entrou no veículo de resgate. Em minutos, chegavam ao pronto-socorro daquela região. O lugar estava lotado. Muitos feridos, moribundos e agonizantes, mas Onofre quase não os percebeu. Apenas pensava no amigo. Sim! Assim o considerava. Não sabia como, mas se afeiçoara a Badé, com uma fraternidade poucas vezes vista.

O socorrista pediu:

— Vá ao balcão e preencha a ficha.

Onofre foi como um raio ao guichê. Ali só teve um problema.

— O senhor é parente?

— Primo! — mentiu.

Ele sabia que o amigo tinha parentes, mas a urgência o impedia de chamá-los.

Após dois minutos, e com a ajuda dos documentos na carteira do amigo, preencheu a ficha, voltando para a parte interna do pronto-socorro. Com o segurança, pegou informações.

— Subiram para a UTI.

Pegou o elevador e seguiu para os últimos andares. Assim que desembarcou, dois médicos e um enfermeiro o abordaram:

— Senhor Onofre, a situação é bem delicada. Estamos fazendo o possível. Peço que o senhor espere.

O tempo passava lentamente enquanto ele aguardava. Tanto que foi chamado para fazer as refeições das 10 horas, 12 horas, 15 horas e 18 horas, e foram poucas as vezes que o médico apareceu para informá-lo. Foi por volta de 23 horas que houve um posicionamento concreto:

— Ele foi estabilizado, mas não sabemos por quanto tempo conseguiremos mantê-lo — disse o médico.

— Como assim? O que aconteceu com ele?

— Foram os rins. Eles pararam. Não há possibilidade de diálise, também não há órgãos disponíveis para transplante.

— Está me dizendo que…

— Estou dizendo que, dentro de alguns minutos o senhor poderá vê-lo — o interrompeu. — Lamento muito.

Assim que o médico saiu, o enfermeiro se aproximou:

— Senhor Onofre, o senhor Willian pediu que ligasse para esse número. — E entregou um pedaço de papel com a anotação.

— E quem é o senhor Will… — Mas se lembrou dos documentos. — Ah, o Badé. — Sim — confirmou o rapaz diante dele.

 Então Onofre fez a pergunta mais acertada: — Quem é o você?

— Depois eu te explico. Agora ligue para esse número antes que seja tarde.

Onofre ligou e, do outro lado da linha, o homem atendeu:

— Alô!

Depois de explicar onde estavam, o homem respondeu rapidamente:

— Chegarei aí o quanto antes. — E desligou.

Quando Onofre interpelaria o enfermeiro, o mesmo havia sumido. Ele se sentou em uma das cadeiras e se entristeceu. Essa tristeza era alimentada pela sensação de impossibilidade e de apego. Mesmo sabendo que ele ainda estava vivo, já sentia falta do amigo. Lembrava-se agora das tantas bebedeiras, da sinuca, das discussões, do carteado. Seus olhos marejaram e ele não tentou ser forte. Chorou.

Quando ouviu o barulho do elevador, secou as lágrimas como pôde. Daquela direção, veio um rapaz aparentando 40 anos, com uma pasta na mão e muito bem vestido. Chegou e o cumprimentou:

— Sou Geremias, ao seu dispor.

Onofre reconheceu a mesma voz do telefonema.

— Meu nome é Onofre.

— E como está o senhor Willian?

— Eu…

Bem na hora, o médico passou pela porta e se aproximou.

— O quadro dele é delicado, mas é possível que falem com ele.

— Acho que será melhor que fale comigo primeiro. — E se apresentou: — Sou Geremias.

— Sim, claro! Ele tem perguntado por você. — E apontou o caminho da porta. Em seguida, olhou para Onofre. — Por favor, aguarde mais um pouco.

Ele meneou a cabeça, enquanto os dois entravam na sala. Em menos de dez minutos Geremias saiu, se despedindo:

— Até breve, senhor Onofre.

— Até! — despediu-se sem prestar atenção.

Então entrou antessala, onde lhe colocaram touca, luvas e um jaleco. Tudo por questão de assepsia. Realizados os procedimentos, entrou no quarto e, vendo o amigo deitado sobre o leito, não resistiu, baixou a cabeça e chorou.

Realmente a situação de Badé não parecia boa. Usava uma máscara para ajudar na respiração, também um monitor cardíaco e, na veia, recebia a medicação que atenuava sua dor.

— São sinceras as tuas lágrimas, não são, meu amigo? — perguntou ao ver Onofre tentando se conter. — Vai passar logo.

Onofre respirava pela boca e fungava, até que conseguiu falar:

— Por que tem que ser assim?

Badé apontou para uma mesinha que tinha copos com água e esperou que o amigo bebesse o líquido. Só respondeu quando viu que Onofre parecia mais calmo:

— Os culpados somos nós mesmos. Ninguém mais.

— Como pode dizer isso?

— Eu me deixei convencer de que não era capaz, de que não conseguiria, de que precisava de algo para me fortalecer, para me animar. E elegi o álcool como minha tábua de salvação, que encontrou terreno fértil em mim, com desilusão, tristeza e amargura — a voz de Badé falhava vez ou outra.

— Não se esforce.

— Deixe-me falar. Você precisa me ouvir. — Badé respirou, também se acalmando. — Eu tive outro amigo antes de você. Eu também o encontrei quase nessa mesma condição em que você me encontra, mas não pudemos ter essa conversa. A medicação dele era forte e não resistiu.

O amigo o ouvia atento.

— Então, Onofre, eu quero te pedir algo, em nome da nossa amizade.

— Peça!

— Não se entregue à bebida. Encontre forças para lutar contra o vício. — Mas Onofre sabia que já tinha uma relação forte com o alcoolismo. — Ou em breve você estará aqui, no meu lugar.

Próximo a Badé, ele ficou estático com a constatação. Sabia que o amigo dizia a verdade.

— Eu não sei como… lutar.

— Vou te ajudar, para que não diga que nunca o fiz. — E Badé sorriu para o amigo. — Primeiro, tenha certeza de que está doente. Segundo, não seja orgulhoso e peça ajuda. Terceiro, a sua família ainda o apoia, eles são o seu alicerce.

Quando terminou de falar, Badé empalideceu, sentindo um leve tremor no corpo. Os equipamentos ao seu lado disparavam bipes um após o outro. Ele se contorcia em dor quando, com severa dificuldade, disse:

— Ace-ace-aceite o me-meu presente. Ob-obri-obrigad…

— Por favor, afaste-se! — pediu um dos enfermeiros.

Mas os movimentos de Badé cessaram repentinamente. O médico e a equipe tentaram todos os procedimentos possíveis, mas nada deu certo.

— Ele se foi.

As palavras fizeram Onofre sentir a cabeça e os ombros pesados. Por instantes, ficou ali olhando para o corpo do amigo, agora, coberto por um lençol. Após alguns minutos, os enfermeiros vieram e prepararam a remoção do corpo.

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