Era fevereiro e Onofre se sentia o próprio abastado, o bem-afortunado, o sortudo. Tudo porque, agora, não tinha que dar qualquer satisfação da sua vida, nem para sua esposa nem para o seu filho, que, empenhados com o trabalho, o deixaram em paz.
Naquele
dia, ele caminhava sentindo uma leveza na alma, um benfazejo mental, uma paz de
espírito tamanha que até cantarolou. O seu destino? Ora, o mesmo de todos os
dias: o bar do Macaio. Antes passaria na padaria, que ficava bem próximo do seu
objetivo final. Gostava de comer um filãozinho
com café, assim ele chamava o pão de sal. A esposa deixava pronto em casa, mas
ele fazia questão de rejeitar.
Olhou
para cima e leu na placa:
— Panificadora Nilo.
A
verdade era que Onofre sempre achou aquele nome propício para o
estabelecimento. Afinal, segundo um livro,
foi no Nilo que ocorreram as pragas do Egito. E ele nunca viu tantas moscas
como naquele lugar. Parece que, logo depois de assolarem o povo egípcio, elas
se aboletaram ali.
Não
tinha problemas com isso. Gostava muito da massa dos pães dali.
— Um
pão e um café — pediu à atendente.
Em
minutos, a mocinha, solícita e educada, lhe entregou o pedido. Naquele dia
estava tão bom que repetiu. Enquanto comia, observava a movimentação em volta:
estudantes, trabalhadores, homens, mulheres, todos com suas vidas, suas
necessidades de comer e seguir para algum lugar. Certamente o único que sairia
dali para o bar seria ele.
Onofre
pagou e foi para a rua. O clima ameno daquela manhã o fez respirar fundo,
puxando o ar puro, um pouco frio e revigorante. Espreguiçou-se. Então ouviu um
murmúrio, em seguida, uma sirene em som crescente. Olhou para o lugar de onde
vinham os barulhos e viu o grupo de pessoas na frente do bar. Correu para lá
temendo pelo pior. Chegou com os paramédicos, que entraram com equipamentos em
punho. No chão, o homem se debatia, gemendo de dor, com lágrimas saindo pelos
olhos e algum líquido pela boca. As mãos pressionavam as laterais do abdômen.
—
Badé! — Onofre se desesperou vendo o colega naquelas condições.
A
equipe de resgate o imobilizou na maca e o colocou dentro da ambulância. Um dos
socorristas o interpelou:
— O
senhor conhece a vítima?
— Conheço
sim.
—
Pode acompanhá-lo?
Nem
respondeu. Pegou os pertences do amigo e entrou no veículo de resgate. Em
minutos, chegavam ao pronto-socorro daquela região. O lugar estava lotado.
Muitos feridos, moribundos e agonizantes, mas Onofre quase não os percebeu.
Apenas pensava no amigo. Sim! Assim o considerava. Não sabia como, mas se
afeiçoara a Badé, com uma fraternidade poucas vezes vista.
O
socorrista pediu:
— Vá
ao balcão e preencha a ficha.
Onofre
foi como um raio ao guichê. Ali só teve um problema.
— O
senhor é parente?
—
Primo! — mentiu.
Ele
sabia que o amigo tinha parentes, mas a urgência o impedia de chamá-los.
Após
dois minutos, e com a ajuda dos documentos na carteira do amigo, preencheu a
ficha, voltando para a parte interna do pronto-socorro. Com o segurança, pegou
informações.
—
Subiram para a UTI.
Pegou
o elevador e seguiu para os últimos andares. Assim que desembarcou, dois
médicos e um enfermeiro o abordaram:
—
Senhor Onofre, a situação é bem delicada. Estamos fazendo o possível. Peço que
o senhor espere.
O
tempo passava lentamente enquanto ele aguardava. Tanto que foi chamado para
fazer as refeições das 10 horas, 12 horas, 15 horas e 18 horas, e foram poucas
as vezes que o médico apareceu para informá-lo. Foi por volta de 23 horas que
houve um posicionamento concreto:
—
Ele foi estabilizado, mas não sabemos por quanto tempo conseguiremos mantê-lo —
disse o médico.
—
Como assim? O que aconteceu com ele?
—
Foram os rins. Eles pararam. Não há possibilidade de diálise, também não há
órgãos disponíveis para transplante.
—
Está me dizendo que…
—
Estou dizendo que, dentro de alguns minutos o senhor poderá vê-lo — o
interrompeu. — Lamento muito.
Assim
que o médico saiu, o enfermeiro se aproximou:
—
Senhor Onofre, o senhor Willian pediu que ligasse para esse número. — E
entregou um pedaço de papel com a anotação.
— E
quem é o senhor Will… — Mas se lembrou dos documentos. — Ah, o Badé. — Sim —
confirmou o rapaz diante dele.
Então Onofre fez a pergunta mais acertada: —
Quem é o você?
—
Depois eu te explico. Agora ligue para esse número antes que seja tarde.
Onofre
ligou e, do outro lado da linha, o homem atendeu:
—
Alô!
Depois
de explicar onde estavam, o homem respondeu rapidamente:
—
Chegarei aí o quanto antes. — E desligou.
Quando
Onofre interpelaria o enfermeiro, o mesmo havia sumido. Ele se sentou em uma
das cadeiras e se entristeceu. Essa tristeza era alimentada pela sensação de
impossibilidade e de apego. Mesmo sabendo que ele ainda estava vivo, já sentia
falta do amigo. Lembrava-se agora das tantas bebedeiras, da sinuca, das
discussões, do carteado. Seus olhos marejaram e ele não tentou ser forte.
Chorou.
Quando
ouviu o barulho do elevador, secou as lágrimas como pôde. Daquela direção, veio
um rapaz aparentando 40 anos, com uma pasta na mão e muito bem vestido. Chegou
e o cumprimentou:
—
Sou Geremias, ao seu dispor.
Onofre
reconheceu a mesma voz do telefonema.
—
Meu nome é Onofre.
— E
como está o senhor Willian?
—
Eu…
Bem
na hora, o médico passou pela porta e se aproximou.
— O
quadro dele é delicado, mas é possível que falem com ele.
—
Acho que será melhor que fale comigo primeiro. — E se apresentou: — Sou
Geremias.
—
Sim, claro! Ele tem perguntado por você. — E apontou o caminho da porta. Em
seguida, olhou para Onofre. — Por favor, aguarde mais um pouco.
Ele
meneou a cabeça, enquanto os dois entravam na sala. Em menos de dez minutos
Geremias saiu, se despedindo:
—
Até breve, senhor Onofre.
—
Até! — despediu-se sem prestar atenção.
Então
entrou antessala, onde lhe colocaram touca, luvas e um jaleco. Tudo por questão
de assepsia. Realizados os procedimentos, entrou no quarto e, vendo o amigo
deitado sobre o leito, não resistiu, baixou a cabeça e chorou.
Realmente
a situação de Badé não parecia boa. Usava uma máscara para ajudar na
respiração, também um monitor cardíaco e, na veia, recebia a medicação que
atenuava sua dor.
—
São sinceras as tuas lágrimas, não são, meu amigo? — perguntou ao ver Onofre
tentando se conter. — Vai passar logo.
Onofre
respirava pela boca e fungava, até que conseguiu falar:
— Por
que tem que ser assim?
Badé
apontou para uma mesinha que tinha copos com água e esperou que o amigo bebesse
o líquido. Só respondeu quando viu que Onofre parecia mais calmo:
— Os
culpados somos nós mesmos. Ninguém mais.
—
Como pode dizer isso?
— Eu
me deixei convencer de que não era capaz, de que não conseguiria, de que
precisava de algo para me fortalecer, para me animar. E elegi o álcool como
minha tábua de salvação, que
encontrou terreno fértil em mim, com desilusão, tristeza e amargura — a voz de
Badé falhava vez ou outra.
—
Não se esforce.
—
Deixe-me falar. Você precisa me ouvir. — Badé respirou, também se acalmando. —
Eu tive outro amigo antes de você. Eu também o encontrei quase nessa mesma
condição em que você me encontra, mas não pudemos ter essa conversa. A
medicação dele era forte e não resistiu.
O
amigo o ouvia atento.
—
Então, Onofre, eu quero te pedir algo, em nome da nossa amizade.
—
Peça!
—
Não se entregue à bebida. Encontre forças para lutar contra o vício. — Mas
Onofre sabia que já tinha uma relação forte com o alcoolismo. — Ou em breve
você estará aqui, no meu lugar.
Próximo
a Badé, ele ficou estático com a constatação. Sabia que o amigo dizia a
verdade.
— Eu
não sei como… lutar.
—
Vou te ajudar, para que não diga que nunca o fiz. — E Badé sorriu para o amigo.
— Primeiro, tenha certeza de que está doente. Segundo, não seja orgulhoso e
peça ajuda. Terceiro, a sua família ainda o apoia, eles são o seu alicerce.
Quando
terminou de falar, Badé empalideceu, sentindo um leve tremor no corpo. Os
equipamentos ao seu lado disparavam bipes um após o outro. Ele se contorcia em
dor quando, com severa dificuldade, disse:
—
Ace-ace-aceite o me-meu presente. Ob-obri-obrigad…
—
Por favor, afaste-se! — pediu um dos enfermeiros.
Mas
os movimentos de Badé cessaram repentinamente. O médico e a equipe tentaram
todos os procedimentos possíveis, mas nada deu certo.
— Ele se foi.
As palavras fizeram Onofre sentir a cabeça e os ombros pesados. Por instantes, ficou ali olhando para o corpo do amigo, agora, coberto por um lençol. Após alguns minutos, os enfermeiros vieram e prepararam a remoção do corpo.
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