Ardes - Capítulo 089

 

Oportunidades aparecem a qualquer instante, e geralmente quando se está impossibilitado de aproveitá-las, mas não foi assim com Onofre. Fazia algum tempo que ele se sentia sem ação dentro de casa, à sombra da mulher e do filho. Sempre calado e pelos cantos, apenas ouvindo. Ao saber que o filho tiraria serviço, sentiu um bom momento para se esparramar e fazer mandos e desmandos.

Como de costume, passou o dia no bar bebendo e jogando, junto ao amigo Badé. Mas, naquele dia, ele extrapolou os limites, bebendo para valer. Foram garrafas e mais garrafas de destilados, cachaças e pingas que beberam sem reservas.

— Não estamos exagerando? — Badé ainda teve um instante de raciocínio.

— Que nada! Tá parecendo a bruaca da minha mulher. Bebe essa porcaria aí e vê se não enche, porra!

Ele despejou outra porção no copo, que transbordou.

— Não desperdiça, caramba — Badé reclamou, erguendo o copo e lambendo a mesa.

— Égua! Você não tem nojo disso que fez? Essa mesa imunda…

— A pinga mata qualquer coisa — disse, espremendo na boca uma banda de limão. — Eu tô é com fome.

— Sério? Que horas são?

— Eu não sei. Roubaram meu relógio outro dia. — Badé apontou o pulso vazio.

— Ô, Macaio, quantas horas são?

— São 23h40. Quase a hora do fechamento. — Macaio enxugava um copo.

— Mas a casa ainda tá lotada.

— Lotada onde? Só tem vocês aqui. — E apontou para os lados.

— Droga! — Onofre não gostou da constatação e mudou de assunto: — Mas você está com fome? Vou te levar pra comer lá em casa.

— Opa! — Badé se animou. — E tem comida lá a essa hora?

— Tem sim. Acho que tem. Minha mulher não cozinha bem, mas, se você sobreviveu aos quitutes do Macaio, vai aguentar aquela gororoba.

— Cuspindo no copo em que bebeu? — retrucou o dono do bar.

— Ah, não enche! — E se levantou pegando o dinheiro. — Cobra aí.

Pegaram o troco e saíram.

— E agora? Pra onde?

— Vamos arrumar um frango — disse rindo Onofre.

Foi uma confusão só, até chegarem ao seu destino. No trajeto, a conversa foi irrigada com nomes pejorativos como: bruxa e jararaca, além de adjetivos como enjoada e chata. E havia mais duas coisas que eram inexplicáveis, mas que, ao mesmo tempo, se complementavam: primeiro, como eles gastaram quase duas horas para chegarem à casa de Onofre; segundo, com uma galinha debaixo do braço.

Era 1h30 quando Letícia ouviu a campainha. Saiu do quarto apreensiva, mas a apreensão se dissipou ao ouvir a voz do marido:

— Ô, Letícia!

Ela abriu a porta, esfregando os olhos.

— Onofre? Que horas são?

— Não sei, mas estamos com fome.

Ele não estava nervoso nem chateado. A verdade é que a caminhada o fez refletir sobre muitas coisas. E como convidara o amigo e ainda pediu que escolhesse o prato, não voltaria atrás.

— A essa hora? — A marido e Badé balançaram a cabeça positivamente. — Tá! E o que querem comer?

O amigo apertou bicho, que soltou um “Cocóóóó!”.

— O que é isso?

— Ué, mulher? Não tá reconhecendo? É uma galinha.

— Você quer que eu…

— Isso! Vamos entrando, Badé, a casa é sua. Letícia, quando estiver pronto, nos chame.

O amigo entregou a galinha a Letícia e passou para a sala. Onofre foi atrás e engataram uma animada conversa. Mas a verdade é que estavam cansados da empreitada: bebedeira o dia todo; caminhada de média distância e a captura da galinha. E em poucos minutos caíram em um sono profundo. Da cozinha, Letícia ouvia os roncos e não sabia quem era o mais barulhento.

— Deus misericordioso — dizia preparando a comida.

Foi depois de algum tempo que Onofre se sentiu ser sacodido, mas não se mexeu. De novo, sentiu os cutucões, e, dessa vez, foi chamado:

— Onofre! Acorda!

E não foi baixo, tanto que Badé acordou.

— O quê? O quê? — E quase num pulo o amigo se ajeitou, sentando-se no sofá.

— Letícia? O que foi? — Onofre se levantou mais devagar.

— A janta está pronta.

A frase foi suficiente para Badé acabar de acordar.

— Estou faminto!

Mas Onofre seria mais tachativo:

— Então sirv…

E ela o cortou:

— Está na mesa da copa.

Os dois se entreolharam um pouco descrentes. Levantaram-se, com Onofre caminhando frente. Lá chegando, a mesa estava posta como para um banquete: arroz, feijão com bacon, farofa de miúdos de frango, couve temperada, galinha ao molho, salada e temperos.

Os olhos de Badé brilharam com o que via. Onofre teve a impressão de que os olhos do amigo até marejaram e quis acabar com aquele clima.

— Vamos comer!

E sentaram-se para se servir.

— Tem pimenta? — pediu Badé olhando para Letícia.

— Experimente essa — ela entregou-lhe o frasco ao voltar da cozinha.

Ao destampar, o cheiro chegou a todos os presentes. Badé a pingou no meio do prato, e colocou feijão por cima, junto com um punhado de farinha. Misturou os três fazendo um tutu. Por cima, deitou o arroz; do lado, a couve; ao meio os pedaços de frango e molho.

— Gosto de ossos — justificou-se ao pegar a costelinha, o sobrecu e os pés.

A salada ele colocou num pratinho ao lado. E foi com nenhuma etiqueta que começou a comer, antes mesmo que Onofre se servisse, afinal, ele e Letícia, assistiam ao visitante:

— Sinceramente, essa é a comida mais gostosa que comi nos últimos anos.

Ele avaliou, baixou a cabeça e continuou comendo. Pareciam o prato e o apetite de quem passou o dia no roçado, mas era apenas o Badé.

Para Letícia, um refrigério em saber que agradou. Para Onofre, um tapa na cara que não esperava. E não ficou só nisso, ao olhar dentro da panela de frango, encontrou um quiabo, coisa que ele adorava. Contudo não ousou elogiá-la, e nem precisava. Letícia sabia quando o agradava.

Ambos comeram e repetiram tanto que a esposa de Onofre se sentou no sofá e, quase dormindo, ouviu uma breve conversa dos amigos:

— Essa é a bruxa, a jararaca de quem tanto me falou? — Onofre ficou incomodado com a constatação de Badé, mas nada comentou. E o amigo continuou. — Fez uma janta de madrugada, sem sequer reclamar, além do mais…

Ouvindo parte daquelas palavras, Letícia dormiu um sono tranquilo no sofá da sala.

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