Oportunidades aparecem a qualquer instante, e geralmente quando se está impossibilitado de aproveitá-las, mas não foi assim com Onofre. Fazia algum tempo que ele se sentia sem ação dentro de casa, à sombra da mulher e do filho. Sempre calado e pelos cantos, apenas ouvindo. Ao saber que o filho tiraria serviço, sentiu um bom momento para se esparramar e fazer mandos e desmandos.
Como
de costume, passou o dia no bar bebendo e jogando, junto ao amigo Badé. Mas,
naquele dia, ele extrapolou os limites, bebendo para valer. Foram garrafas e
mais garrafas de destilados, cachaças e pingas que beberam sem reservas.
—
Não estamos exagerando? — Badé ainda teve um instante de raciocínio.
—
Que nada! Tá parecendo a bruaca da minha mulher. Bebe essa porcaria aí e vê se
não enche, porra!
Ele despejou outra porção no copo, que transbordou.
—
Não desperdiça, caramba — Badé reclamou, erguendo o copo e lambendo a mesa.
—
Égua! Você não tem nojo disso que fez? Essa mesa imunda…
— A
pinga mata qualquer coisa — disse, espremendo na boca uma banda de limão. — Eu
tô é com fome.
—
Sério? Que horas são?
— Eu
não sei. Roubaram meu relógio outro dia. — Badé apontou o pulso vazio.
— Ô,
Macaio, quantas horas são?
—
São 23h40. Quase a hora do fechamento. — Macaio enxugava um copo.
—
Mas a casa ainda tá lotada.
—
Lotada onde? Só tem vocês aqui. — E apontou para os lados.
—
Droga! — Onofre não gostou da constatação e mudou de assunto: — Mas você está
com fome? Vou te levar pra comer lá em casa.
—
Opa! — Badé se animou. — E tem comida lá a essa hora?
—
Tem sim. Acho que tem. Minha mulher não cozinha bem, mas, se você sobreviveu
aos quitutes do Macaio, vai aguentar aquela gororoba.
—
Cuspindo no copo em que bebeu? — retrucou o dono do bar.
—
Ah, não enche! — E se levantou pegando o dinheiro. — Cobra aí.
Pegaram
o troco e saíram.
— E
agora? Pra onde?
—
Vamos arrumar um frango — disse rindo Onofre.
Foi
uma confusão só, até chegarem ao seu destino. No trajeto, a conversa foi
irrigada com nomes pejorativos como: bruxa
e jararaca, além de adjetivos como enjoada e chata. E havia mais duas coisas que eram inexplicáveis, mas que, ao
mesmo tempo, se complementavam: primeiro, como eles gastaram quase duas horas
para chegarem à casa de Onofre; segundo, com uma galinha debaixo do braço.
Era
1h30 quando Letícia ouviu a campainha. Saiu do quarto apreensiva, mas a
apreensão se dissipou ao ouvir a voz do marido:
— Ô,
Letícia!
Ela
abriu a porta, esfregando os olhos.
—
Onofre? Que horas são?
—
Não sei, mas estamos com fome.
Ele
não estava nervoso nem chateado. A verdade é que a caminhada o fez refletir
sobre muitas coisas. E como convidara o amigo e ainda pediu que escolhesse o
prato, não voltaria atrás.
— A
essa hora? — A marido e Badé balançaram a cabeça positivamente. — Tá! E o que
querem comer?
O
amigo apertou bicho, que soltou um “Cocóóóó!”.
— O
que é isso?
—
Ué, mulher? Não tá reconhecendo? É uma galinha.
—
Você quer que eu…
—
Isso! Vamos entrando, Badé, a casa é sua. Letícia, quando estiver pronto, nos
chame.
O
amigo entregou a galinha a Letícia e passou para a sala. Onofre foi atrás e
engataram uma animada conversa. Mas a verdade é que estavam cansados da empreitada:
bebedeira o dia todo; caminhada de média distância e a captura da galinha. E em
poucos minutos caíram em um sono profundo. Da cozinha, Letícia ouvia os roncos
e não sabia quem era o mais barulhento.
—
Deus misericordioso — dizia preparando a comida.
Foi
depois de algum tempo que Onofre se sentiu ser sacodido, mas não se mexeu. De
novo, sentiu os cutucões, e, dessa vez, foi chamado:
—
Onofre! Acorda!
E
não foi baixo, tanto que Badé acordou.
— O
quê? O quê? — E quase num pulo o amigo se ajeitou, sentando-se no sofá.
—
Letícia? O que foi? — Onofre se levantou mais devagar.
— A
janta está pronta.
A
frase foi suficiente para Badé acabar de acordar.
—
Estou faminto!
Mas
Onofre seria mais tachativo:
—
Então sirv…
E
ela o cortou:
—
Está na mesa da copa.
Os dois
se entreolharam um pouco descrentes. Levantaram-se, com Onofre caminhando
frente. Lá chegando, a mesa estava posta como para um banquete: arroz, feijão
com bacon, farofa de miúdos de frango, couve temperada, galinha ao molho,
salada e temperos.
Os
olhos de Badé brilharam com o que via. Onofre teve a impressão de que os olhos
do amigo até marejaram e quis acabar com aquele clima.
—
Vamos comer!
E
sentaram-se para se servir.
—
Tem pimenta? — pediu Badé olhando para Letícia.
—
Experimente essa — ela entregou-lhe o frasco ao voltar da cozinha.
Ao
destampar, o cheiro chegou a todos os presentes. Badé a pingou no meio do
prato, e colocou feijão por cima, junto com um punhado de farinha. Misturou os
três fazendo um tutu. Por cima, deitou o arroz; do lado, a couve; ao meio os
pedaços de frango e molho.
—
Gosto de ossos — justificou-se ao pegar a costelinha, o sobrecu e os pés.
A
salada ele colocou num pratinho ao lado. E foi com nenhuma etiqueta que começou
a comer, antes mesmo que Onofre se servisse, afinal, ele e Letícia, assistiam
ao visitante:
—
Sinceramente, essa é a comida mais gostosa que comi nos últimos anos.
Ele
avaliou, baixou a cabeça e continuou comendo. Pareciam o prato e o apetite de
quem passou o dia no roçado, mas era apenas o Badé.
Para
Letícia, um refrigério em saber que agradou. Para Onofre, um tapa na cara que
não esperava. E não ficou só nisso, ao olhar dentro da panela de frango,
encontrou um quiabo, coisa que ele adorava. Contudo não ousou elogiá-la, e nem
precisava. Letícia sabia quando o agradava.
Ambos
comeram e repetiram tanto que a esposa de Onofre se sentou no sofá e, quase
dormindo, ouviu uma breve conversa dos amigos:
— Essa é a bruxa, a jararaca de quem tanto me falou? — Onofre ficou incomodado com a constatação de Badé, mas nada comentou. E o amigo continuou. — Fez uma janta de madrugada, sem sequer reclamar, além do mais…
Ouvindo parte daquelas palavras, Letícia dormiu um sono tranquilo no sofá da sala.
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