Ardes - Capítulo 049



Era doce. Ou assim o sentia. Bebia a oitava dose em menos de dez minutos. Naquele instante, retinha o líquido na boca, degustando-o.
“Delícia…”
Num só gole, mandou para baixo a porção de pinga[1]. Ao seu lado, um homem de meia-idade trajando roupas puídas.
— Badé, pode parar de me olhar assim?
— Onofre, pode até não me contar, mas que você está diferente, isso está.
— Macaio, serve uma dose generosa para o nosso amigo aqui — pediu Onofre.
Isso gerou um sorriso nos lábios de Badé.
— Eu não ligo. Na verdade, nunca liguei para essas coisas — ele disse e deu um pequeno gole racionando a bebida.
— Não liga para o que, Badé?
— Para as pessoas e os seus segredos.

Onofre não queria se aprofundar no assunto, mas deu um pitaco:
— Acho que segredos todos têm. — E entornou um copinho.
— Mesmo tendo segredos, somos pessoas e construímos laços, uns com os outros.
— Deveríamos… — E pediu mais duas doses, acompanhadas por rodelas de calabresa.
Onofre tinha certa simpatia por Badé, em parte, por essa conversa filosófica e despretensiosa. Desde que se conheceram, bebericando pela primeira vez, criou-se esse vínculo. Apesar das roupas simples e da aparência humilde, Badé sempre informava que era aposentado por um banco e que, pelo excesso de serviço, perdeu a saúde e a esposa, se entregando à bebida.
— Deveríamos! — concordou com Onofre — Aceita um cigarro?
— Não, obrigado!
Era algo de que Onofre nunca gostou. E guardava consigo:
“É prejudicial à saúde.”
Mas não se opunha ao vício do amigo. Ao contrário, Onofre admirava o ritual do cigarrinho de palha, pois Badé não fumava cigarro industrializado. Era de fumo mesmo.
Badé retirava do bolso da calça um pequeno pedaço de fumo de rolo e, com um canivete, o fatiava. Do bolso da camisa, pegava o papel próprio para cigarro, onde colocava o fumo e o enrolava. Algumas lambidas na borda do papel, garantiam que não desenrolasse durante as tragadas. Acendia a cigarrilha e começavam as baforadas. Não deixava de ser um momento nostálgico do dia.
— Por que não fuma cigarros comuns? — vez ou outra, perguntava Onofre.
— Fazem mal à saúde — respondia sorrindo o colega.
— Tá bom, mister saúde. — As brincadeiras e risadas eram comuns entre ambos. — Macaio, me traz dois pés de frango e mais duas doses.
— Opa! Agora sim.
A tarde seguiu festiva e animada.


[1] Cachaça.

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