Boin - Capítulo 014


Para ela, tudo o que acontecia naqueles dias, era como um aviso. No seu entender, havia um aumento na proximidade entre o Paraíso e o Inferno. Não exatamente entre os lugares, mas entre os seus integrantes. Ela não saberia explicar detalhadamente, mas além de sentir isso, ela via coisas estranhas, já que o seu poder, quando tinha energia, permitia que fosse a vários lugares. Tudo isso a deixava pensativa, reflexiva no motivo de ninguém dizer ou fazer nada.

“Talvez não haja o que possa ser feito.”

Deitada numa projeção sobre um grande buraco, ela olhava para para cima, vendo o lado de baixo do Inferno. Tinha a visão perfeita de toda a estrutura que parecia flutuar livremente sobre o lugar onde estava. Mas isso era uma mera impressão. Sempre teve essa certeza. Já sobre o Abismo, ela estava acostumada àquele lugar e o tinha como seu. Possivelmente tinha essa sensação pelos milhares e milhares de anos que passava sozinha ali e, talvez, esse fosse um dos problemas: tanto tempo para reflexão. Mas, com aqueles últimos acontecimentos, ela passou a se recordar não do seu antigo lar, mas de suas origens.

Archos…”

A palavra lhe veio tão nítida que não sabia se ouvira ou se a sua mente lhe pregava uma peça. Era algo que ela quase esquecera.

“Quase.”

Mas talvez não houvesse como, já que muitas coisas ao seu redor e no seu cotidiano, vivificavam essas recordações. Por exemplo, quando passava pelo segundo círculo e observava a forma como era, a grandeza dos espaços e o posicionamento das construções.

“Tem de ser proposital.” — Assim ela pensava.

Pegou uma fuligem maior em sua mão e a apertou. Quando abriu, viu o pó ser levado pela brisa quente do lugar. Então teve uma recordação:  

 

Das muitas coisas a serem observadas ali, a maior era o palácio de Belial, que fica bem ao centro daquele platô. Ele era imenso, mas de aparência descuidada e feia. Era cercado por vales e montanhas, tudo completamente árido e corroído, sem nenhuma vegetação ao seu redor. Ao invés disso, era possível ver, o que os demônios chamavam de floresta de pedras. Como se as rochas se empilhassem uma sobre a outra, formando alguma coisas que era uma recordação de uma árvore. Os demônios não gostavam dali porque não era possível ver a altura dessas estruturas, logo, não sabiam quando seriam esmagados por rochas que caíam sobre eles.

Naquele platô havia uma segunda construção mais importante: um Preposto. Que inicialmente seria uma fortaleza, mas que teve a sua funcionalidade alterada. Mas qual a importância de um simples preposto? Bem, foi logo depois da Queda que tudo aconteceu. Muita coisa precisou ser reestruturada para atender às necessidades dos recém chegados, inclusive a própria ordem dentro da hierarquia. Belial seguia como supremo dentro da classe dos arcanjos e, precisava abaixo dele de sete secretários. Essas eram (e sempre serão), posições muito cobiçadas tanto pelo destaque, quanto pelo estatus, pelo “poder”. Por isso a disputa para se assumir uma dessas vagas foi ferrenha, e decidida em um “todos-contra-todos”. Os últimos sete que restassem de pé, seriam os eleitos. Foi na última vaga, que se chegou a dois candidatos: Aduquistes e Guerudina-Zã. Ora. Aduquistes foi ferido gravemente pois, o seu oponente, Guerudina-Zã, era de essência bélica bem maior, e assim conquistou a vaga. Para não cair em desgraça e esquecimento, da mesma forma como tantos outros arcanjos, Aduquistes, no momento em que via a ascensão do sétimo secretário, clamou por servidão ao próprio Belial. Este não deu ouvido de início, mas assim que o derrotado citou:

“— …Afinal o meu senhor deve ter o mais eficiente gerenciamento de entrada e saída de pessoal…”

O príncipe entendeu que isso seria uma vantagem tática, e lhe deu ouvidos. Após longa conversa entre ele, seus secretários e Aduquistes, ficou decidido pelo Preposto. Pessoal e informações seriam filtrados e direcionados diretamente para quem fosse de direito. Até aquele momento, nada demais, contudo Guerudina-Zã estava ressabiado com tamanha “presteza” vinda de Aduquistes e, logo que pode ficar a sós com Belial, pediu para cuidar pessoalmente da implantação física desse preposto, ao qual lhe foi concedido. Incomodado como estava, o sétimo secretário lançou as bases do Preposto de Aduquistes na fortaleza oeste, na linha limítrofe do ermo, em rochas incrustadas na própria muralha que cercava o Inferno. O que necessitou de muito poder para ser executado. A ideia era minar a eficiência do trabalho de Aduquistes, mas não foi bem o que aconteceu.


Com essa história em mente, ela rolou para o lado ficando de bruços, deixando o braço pendurado, como se apontasse para o que havia no fundo do Abismo. O brilho alaranjado agora refletia em seus olhos e, por vezes, ela se sentia hipnotizada. Como se, o que estivesse naquele fundo, a chamasse. Rolou de volta, ficando com a barriga para cima, focando em nada, agora recordando do último sonho.

“Porque ele acessa tais lugares com tamanha facilidade?”

E havia outros e outros questionamentos sem resposta. Foi depois de longo tempo que decidiu:

“Vou procurar por ele. Talvez conte algo que possa me ajudar.”

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