Guynive - Capítulo 002


(Obs.: Onde estiver escrito Guynive, leia-se Guínive.)


Três semanas antes...

Ivan já estava posicionado próximo à pista de pouso. Foi tudo tão corrido que a passagem pela cantina pareceu não ser registrada pelo seu cérebro, mas o gosto de mortadela em sua boca ainda era recente.

Fazia vinte minutos que os pilotos se comunicaram com a torre informando sobre a viagem. Ivan repensava nessas e em outras informações, quando viu no azul do céu dois pequenos e distantes pontos no horizonte se aproximando lentamente.

Chamou a atenção de toda a base quando o barulho dos motores mostrou a imponência dos dois aviões C130 Hércules que aterrissavam. Era rotineiro, mas não deixava de ser algo prazeroso de se presenciar.


Após o pouso veio o desembarque. O primeiro avião viera com grande quantidade de equipamentos: armas, coletes, munições. Coisa que a base não via há bastante tempo. O segundo avião estava carregado de soldados, todos novatos. Carne nova no jargão do militarismo. Tudo normal, não fosse a presença feminina dentre os novos combatentes.

Parados próximos ao hangar, os novatos ouviam as primeiras instruções. Daqueles 90 recém-chegados, 60 eram mulheres. Dentre elas, uma chamava mais a atenção pelo porte físico: era alta, com mais de 1,90 metro; robusta, tendo entre 75 e 80 quilos; carregava severidade e altivez no olhar. E excluindo-a, todos tinham o brilho da curiosidade nos olhos.

Por um tempo, ela olhou para Ivan e depois voltou sua atenção ao oficial palestrante, Charles. Ele ministrava o discurso padrão, usado em todas as recepções de novatos. Após rápidas instruções, todos foram dispensados, talvez porque os soldados veteranos tivessem uma missão programada e precisavam voltar para seus alojamentos. Então ficaram para recepcionar os recém-chegados apenas auxiliares e poucos capitães, porém, bem antes do término desse protocolo, Ivan só pensava em um lugar, e quando pode, correu para lá.

— Martina, por favor! Tive que recepcionar os novatos.

Martina era a sargento responsável pelo refeitório, trabalhava nessa função há anos. Detinha tal firmeza no agir que só poderia ser esse o seu sobrenome.

— Não posso, já passou do horário — apontava o relógio.

— Eu estava preso aos afazeres, mas não o esqueci em nenhum minuto — Ivan salivava.

— Se deseja tanto, terá que preencher os requerimentos em três vias, autenticados em cartório e assinados pelo comandante da base — e fez cara de séria.

— Qualquer coisa! Qualquer coisa!

— Ok, rapaz. Você venceu — disse sorrindo.

Martina foi à cozinha e voltou trazendo um prato com dois pães com grossas fatias de mortadela no meio; um deles estava mordido pela metade. Na outra mão, uma caneca com café quente.

— Da próxima vez, te deixo com fome.

Tentava manter a seriedade.

— Deus a abençoe por ter piedade de um simples cabo — falou em tom gaiato, tocando-a no ombro.

— Deixando as brincadeiras de lado, sei que você vale a pena, e que juntando muitos aqui, não daria um como você.

— Obrigado! — respondeu um pouco tímido. — Apenas cumpro com meu dever.

— Não sei se você faz apenas isso. — Martina ouviu algumas coisas sobre o campo de batalha.

Feliz, ela abriu seu largo sorriso e regressou para a cozinha, seu território. Ninguém naquela base ousava questionar sua autoridade naquele recinto, nem mesmo o general. Rezava a lenda que, certa vez, ele reclamou da comida, que estaria sem gosto. Inconformada com o comentário, Martina solicitou suas férias, que se acumulavam há cinco anos, e três dias depois embarcou em um avião rumo à América. Porém não havia, nem houve, substituto à altura, então o que se seguiu naquela cozinha foi algo tenebroso: refeições salgadas, insossas e, por vezes, estragadas. A gota d'água foi um cabelo na sopa do general. O próprio exigiu que Martina fosse trazida perante ele, e assim aconteceu, mas ela veio com papéis que solicitavam sua imediata transferência. Diante da situação, o general simplesmente implorou para que ela permanecesse. Claro que essa parte da conversa não chegou aos ouvidos de mais ninguém, mas a verdade é que seis meses depois dessa "reunião" Martina foi promovida.

O cabo pegou o lanche e foi para uma das mesas enquanto a fila do refeitório crescia formada pelos novatos. Ivan fez uma rápida prece e os observou durante o lanche. Boa parte se entrosara, sendo possível ver a formação de grupos, e outros permanecendo a sós. Se desgarrou dali quando olhou através da janela da cantina, pensando no que deveria fazer mais tarde, coisa fácil de imaginar. Sentia uma vivacidade nos olhos e os reflexos mais rápidos: o corpo pedia ação. A preparação para a missão sempre o deixava assim, mas sabia que deveria descansar pelo período da tarde, pois o tempo da missão era impreciso.

Seus pensamentos se desfizeram quando mesa e banco tremeram; a novata sentou-se próximo a ele, que parou de mastigar. O cabo sentiu-se pequeno ao observar o porte da garota, e Ivan não era dos mais baixos ou dos mais fracos, media 1,78 metro e 80 quilos muito bem distribuídos em sua composição física.

"Guynive S. Troyans". — Leu mentalmente a identificação no uniforme da garota que encarava o lanche na bandeja à sua frente. Com o canto da boca, o cabo deu um sutil sorriso como se dissesse:

"É, tem dias que a refeição também faz parte do treinamento".

Ela se manteve indiferente ao olhar e ao sorriso, e iniciou a refeição. Esse foi o primeiro e um dos mais amistosos contatos que tiveram.

O cabo leu a placa anunciando o cardápio para o almoço: almôndegas. Mas o pessoal as conhecia como granadas. Riu para si, e a garota o olhou, estranhando a atitude. Foi quando Josef se aproximou da mesa.

— Senhor, os capitães Marquez e Ralf pediram que os encontrasse, se possível, imediatamente.

— Claro! — Ivan se levantou, dizendo: — Com licença!

Não teve resposta e também não percebeu que Guynive o observou até passar pela porta. Dali o mensageiro tomou outro caminho.

Pelo caminho, Ivan encontrou o sargento Caminton e outros auxiliares. Certamente começariam a acomodação dos novatos, lhes informariam o funcionamento da base e começariam com alguns treinos. Ele era um negro alto e forte, vindo de Nova Orleans. Era carrancudo, mas de boa cordialidade.

— Bom dia, cabo! Está um ótimo dia para movimentar tropas, não acha?

— Bom dia, sargento. Tem razão...

Caminton o observou ressabiado.

— Conheço esse olhar, o que quer me dizer?

— Nada de mais sargento, só que os novatos chegaram há pouco e estão exaustos.

— Você não estaria tentando me comover, estaria, cabo Ivan? — E lhe lançou um olhar mais detalhista. — Sempre pensando nos outros. Sequer tem dormido?

Ivan ficou desconcertado com a análise tão assertiva.

— Um pouco, quando dá.

Caminton sorriu mostrando seus dentes brancos como marfim.

— Se o senhor consegue aguentar o tranco, os recrutas também conseguirão — respondeu brusco ao sair. — Até mais ver!

O cabo sabia que ele não cometeria excessos, mas chegaria ao limite dos novatos.

Por ora, aquele não era o problema. Ivan conjecturava o motivo de ser chamado enquanto tornou a caminhar. Poucos metros à frente, encontrou os capitães e se apresentou a eles. Ao prestar continência, percebeu os semblantes abatidos.

— Ivan, não foi à toa que o chamamos. Juntos nós conseguimos driblar muitos problemas — começou Ralf.

— Mas nesse momento tudo parece conspirar contra nós. — Marquez estendeu-lhe uma pasta. — Leia o campo 27.

A pasta era um resumo curricular dos recém-chegados. No campo 27 havia a seguinte pergunta:

"TEM EXPERIÊNCIA EM CAMPO/COMBATE?"

A maioria das respostas era:

"NÃO"

Ivan fechou a pasta com olhar sóbrio.

— Eu pensava que nos mandariam soldados com alguma experiência. Mas nem isso. — Havia penúria na voz de Marquez.

— São apenas recrutas com treinamento básico. — Ralf balançava negativamente a cabeça.

O cabo encarou seus superiores.

— Senhores, creio que à primeira vista seja um grave problema, mas não de difícil solução — observou Ivan.

— Estou preocupado com esse pessoal tão inexperiente num caldeirão como esse nosso — acrescentou Ralf. — Os combates aqui são infernais. Você sabe.

— Que fique claro que essa é uma conversa totalmente informal. Pelas regras seria impossível que você nos assessorasse — Marquez foi enfático.

— Mas consideramos aqui o seu passado. Sabemos quem você era, e lendo a sua ficha, confirmamos suas ações. Então essa seria uma conversa entre iguais. — Ivan não gostou muito do que ouviu.

— Já passou por algo parecido antes? — Marquez almejava por uma resolução.

— Talvez, mas não consigo organizar meus pensamentos por agora.

— Algo o incomoda? — indagou Ralf.

— Sim, saio em missão dentro de poucas horas e preciso fazer algumas arrumações.

— Tinha me esquecido, também vamos. Já liberamos todos os soldados e ficamos nós com nossas conjecturas — confirmou Marquez.

— O problema é tão grave que nos esquecemos das demais coisas. Eu mesmo ainda não tomei o café da manhã.

— Ah, não? Boa sorte com a Martina — falou Ivan lembrando-se da situação há pouco vivida.

— Sinto um tom de dificuldade na sua frase.

— Pode apostar.

Riram e se despediram.

Durante aquele dia, Ivan inspecionou todos os equipamentos e conversou com os soldados que participariam da missão. Antes do almoço, estava tudo concluído. Após a refeição, caminhou até o alojamento desejoso pelo repouso. Chegando à sua cama, uma carta, na qual reconheceu o remetente:

"C. T. COSTELLO — ADVOGADO DE FAMÍLIA."

Aquilo lhe causava preocupação, pois já sabia do que se tratava, só não sabia como o localizaram, mas esta já era a quarta correspondência naqueles três anos.

Ivan banhou-se e, após se vestir, ajoelhou-se orando:

— Deus Altíssimo, ajude-nos com esta demanda. Os riscos são altos e sangue inocente pode ser derramado. Dá-nos tua misericórdia, proteção e sabedoria. Amém!

Quarto em penumbra,silêncio pelos corredores. Rápido o sono lhe veio.



C130 Hércules - Avião de que possui muita versatilidade. Pode levar soldados, veículos, equipamentos, e até mesmo abastecer outras aeronaves.

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